570 segundos
Por conta de um comunicado emitido pelo escritório regional da JUCESP (Junta Comercial do Estado de São Paulo) de Birigui, foram retomadas as discussões acerca da possibilidade de integralização do capital social de sociedades empresárias com criptoativos (por exemplo, criptomoedas, incluindo as bitcoins).
Em referido comunicado, denominado “Harmonização de entendimento”, foi informado que “a empresa pode integralizar o capital social com bitcoins/criptomoedas”.
Mesmo com o comunicado da JUCESP, ainda há muita dúvida com relação à possibilidade de integralização de capital social com criptomoedas. Veja em nosso artigo os principais pontos desse debate.
O que é Capital Social e como ele pode ser integralizado?
Primeiramente, é importante esclarecer o que é capital social, como é constituído e quais são as suas finalidades, uma vez que desempenha importante função nas sociedades empresárias, que serão analisadas neste artigo.
As sociedades empresárias, a exemplo das sociedades limitadas e sociedades por ações, devem ter em destaque em seu contrato/estatuto social o valor destinado pelos sócios ao capital social. Assim, capital social deve ser entendido como o montante das contribuições dos sócios para a sociedade, a fim de que ela possa realizar o seu objeto social.
O capital social é divido em quotas/ações, as quais conferem ao seu titular o status de sócio/acionista e são consideradas bens móveis para os efeitos legais.
Para terem a qualidade de sócios e participarem do quadro societário de uma sociedade, os interessados deverão subscrever quotas/ações dessa sociedade . A título de esclarecimento, a subscrição das quotas/ações seria a compra desses títulos diretamente da sociedade, seja no momento de sua constituição ou no evento de aumento de capital social.
Ao subscreverem as quotas/ações, os sócios ficam obrigados a uma contribuição para o capital social, que seria a integralização do capital social. Assim, a integralização nada mais é que o pagamento do valor das quotas/ações que foram adquiridas pelo sócio.
O capital social poderá ser formado pela contribuição em dinheiro ou bens (móveis, imóveis, materiais ou imateriais, incluindo participações em outras sociedades), desde que estes sejam suscetíveis de avaliação em dinheiro . Para as sociedades empresárias em comento, não são admitidas as contribuições em serviços.
O capital social, além de propiciar o desenvolvimento do objeto social, deve ser visto também como uma proteção para os credores da sociedade, uma vez que é um valor resguardado para garantir as obrigações por esta assumidas. Por este motivo, o capital social, em regra, deve permanecer imutável, podendo ser reduzido apenas se observados os procedimentos previstos em lei e as atividades desenvolvidas pela empresa, por exemplo, e os bens conferidos ao capital social devem ser avaliados.
Integralização do capital social com bens
Na hipótese de integralização das quotas/ações com bens, os sócios devem verificar se tais bens conferidos ao capital contribuem com a consecução do objeto social da sociedade. Os bens devem ser compatíveis com a atividade empresarial a ser desenvolvida pela empresa .
No caso das sociedades empresárias limitadas, os sócios são solidariamente responsáveis pela exata estimação dos bens conferidos ao capital social pelo prazo de 5 (cinco) anos . Em que pese não haver obrigação legal para apresentação de laudo de avaliação de bens nestes casos, na prática, os sócios geralmente optam por apresentar o laudo para evitar qualquer questionamento futuro de credores da sociedade, bem como possível responsabilização dos sócios.
Com relação às companhias, a Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976 (“Lei das S.A.”), estabelece em seu artigo 8º a necessidade de avaliação dos bens conferidos ao capital social.
Nos termos da lei em comento, o laudo de avalição deverá ser feito por 3 (três) peritos ou por empresa especializada, nomeados em assembleia geral, devendo ser apresentado de forma fundamentada, com a indicação dos critérios de avaliação adotados.
Tais medidas previstas em lei, conforme comentado acima, são para a proteção dos credores das sociedades, uma vez que os recursos conferidos ao capital social que garantem o cumprimento das obrigações assumidas pela sociedade.
Integralização do capital social com criptoativos
Os criptoativos são ativos virtuais que surgiram com o intuito de permitir a realização de pagamentos e transferências financeiras eletrônicas diretamente entre partes interessadas (indivíduos ou pessoas jurídicas) sem a intermediação de uma instituição financeira. Tais ativos virtuais estão protegidos por criptografia e as operações ficam registradas em uma rede de computadores.
Dentre as espécies de criptoativos, temos as criptomoedas, as conhecidas “moedas virtuais”, que tiveram seu início com as Bitcoins. As moedas virtuais não fazem parte do sistema bancário oficial e não são autorizadas e nem reguladas pelo Banco Central do Brasil.
Desta forma, as criptomoedas não são consideradas juridicamente como “moedas”, mas sim como bens móveis incorpóreos, podendo ser utilizadas como instrumento de troca de bens e serviços.
Definida a natureza das criptomoedas, passamos a analisar a possibilidade de sua utilização para a integralização do capital social de sociedades empresárias.
O Código Civil Brasileiro e a Lei das S.A. não limitam quais bens podem ser conferidos ao capital social das sociedades, sendo certo que tais bens devem ser suscetíveis de avaliação e, conforme visto acima, compatíveis com as atividades a serem exercidas pela sociedade .
Assim, entendemos que nem toda sociedade empresária poderá ter seu capital social integralizado com criptoativos, pelo fato destes bens não serem compatíveis com as atividades previstas no objeto social.
Havendo a compatibilidade dos criptoativos com as atividades exercidas pela sociedade, resta verificar se tais bens são suscetíveis de avaliação pecuniária.
Os criptoativos foram regulados pela Instrução Normativa da Receita Federal do Brasil nº 1.888, de 3 de maio de 2019 (“IN RFB 1.888/2019”), a qual disciplina a obrigatoriedade de prestação de informações à Receita Federal sobre as operações realizadas com criptoativos.
Destacamos que o termo criptoativos é mais amplo que criptomoedas, sendo certo que a criptomoeda é uma espécie de criptoativo. Nos termos do artigo 5º, inciso “I” da IN RFB 1.888/2019, criptoativos podem ser definidos da seguinte forma:
“A representação digital de valor denominada em sua própria unidade de conta, cujo preço pode ser expresso em moeda soberana local ou estrangeira, transacionado eletronicamente com a utilização de criptografia e de tecnologias de registros distribuídos, que pode ser utilizado como forma de investimento, instrumento de transferência de valores ou acesso a serviços, e que não constitui moeda de curso legal.”
Ao definir os criptoativos como “representação digital de valor”, a Receita Federal possibilita a interpretação de que esses ativos são passíveis de avaliação pecuniária e, consequentemente, a viabilidade de integralização desses bens incorpóreos ao capital social de sociedades empresárias.
Considerações finais
A “Harmonização de entendimento” emitida pelo escritório regional da JUCESP de Birigui, apesar de não trazer nenhuma inovação ou regular o tema, é um importante passo para a aceitação da integralização do capital social de sociedades com criptoativos.
Não há empecilho legal para a para conferência ao capital social de criptoativos, sendo certo que os principais obstáculos são: (i) compatibilidade desses bens com o objeto social das sociedades; e (ii) avaliação desses bens.
Note que ainda não há métodos bem definidos para avaliação dos criptoativos, ademais, estes bens têm se mostrado voláteis, com grande oscilação de preço no mercado, dentre outros riscos de fraudes e operacionais.
Assim, caso seja de interesse dos sócios a conferência de criptoativos ao capital social das sociedades, devem ter cuidado na escolha e avaliação desses criptoativos, uma vez que serão solidariamente responsáveis pela estimação desses bens conferidos ao capital social.
¹ As quotas/ações também poderão ser recebidas pelo interessado por um sócio da sociedade, por exemplo, por meio de doação ou compra e venda. Uma vez transferida a titularidade das quotas/ações, o interessado passará a ser sócio da sociedade.
² Código Civil Brasileiro (Lei nº 10.406/2002): “Art. 997. A sociedade constitui-se mediante contrato escrito, particular ou público, que, além de cláusulas estipuladas pelas partes, mencionará:
(…) III – capital da sociedade, expresso em moeda corrente, podendo compreender qualquer espécie de bens, suscetíveis de avaliação pecuniária;”
Lei das S.A. (Lei nº 6.404/1976): “Art. 7º O capital social poderá ser formado com contribuições em dinheiro ou em qualquer espécie de bens suscetíveis de avaliação em dinheiro.”
³ “Cabe mencionar que toda e qualquer contribuição ao capital, em bens ou em dinheiro, tem um sentido não apenas de garantia aos credores e de índice de equilíbrio econômico-financeiro da sociedade, mas, principalmente, de permitir a consecução do objeto social. Assim, devem ser conferidos ao capital social apenas bens compatíveis com a realização da atividade empresarial enunciada no objeto da sociedade limitada.” CARVALHOSA, Modesto – Comentários ao Código Civil: parte especial: do direito da empresa (artigos 1.052 a 1.195) volume 13 – São Paulo: Saraiva, 2003, pg. 70.
4 Código Civil Brasileiro (Lei nº 10.406/2002): “Art. 1.055. O capital social divide-se em quotas, iguais ou desiguais, cabendo uma ou diversas a cada sócio.
§ 1º Pela exata estimação de bens conferidos ao capital social respondem solidariamente todos os sócios, até o prazo de cinco anos da data do registro da sociedade.
§ 2º É vedada contribuição que consista em prestação de serviços.”
5 “Art. 8º A avaliação dos bens será feita por 3 (três) peritos ou por empresa especializada, nomeados em assembleia-geral dos subscritores, convocada pela imprensa e presidida por um dos fundadores, instalando-se em primeira convocação com a presença de subscritores que representem metade, pelo menos, do capital social, e em segunda convocação com qualquer número. (Vide Decreto-lei nº 1.978, de 1982)
§ 1º Os peritos ou a empresa avaliadora deverão apresentar laudo fundamentado, com a indicação dos critérios de avaliação e dos elementos de comparação adotados e instruído com os documentos relativos aos bens avaliados, e estarão presentes à assembleia que conhecer do laudo, a fim de prestarem as informações que lhes forem solicitadas.
§ 2º Se o subscritor aceitar o valor aprovado pela assembleia, os bens incorporar-se-ão ao patrimônio da companhia, competindo aos primeiros diretores cumprir as formalidades necessárias à respectiva transmissão.
§ 3º Se a assembleia não aprovar a avaliação, ou o subscritor não aceitar a avaliação aprovada, ficará sem efeito o projeto de constituição da companhia.
§ 4º Os bens não poderão ser incorporados ao patrimônio da companhia por valor acima do que lhes tiver dado o subscritor.
§ 5º Aplica-se à assembleia referida neste artigo o disposto nos §§ 1º e 2º do artigo 115.”
6 Destacamos que a integralização de bens estranhos ao objeto social pode ser considerada, inclusive como abuso de poder de controle, nos termos do artigo 117, §1º, “h” da Lei das S.A.